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Channel: Resenhas – Posfácio
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Travessia (desperta) pela terra sonâmbula

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Já havia me surpreendido muito positivamente com a literatura de Mia Couto quando li um livrinho bem menos conhecido dele, intitulado A confissão da leoa (cheguei mesmo a escrever uma resenha à época). Se tento forçar a memória, lembro de uma narração sensível, na qual a preocupação social e política não serve de empecilho para um lirismo consciencioso (no melhor sentido do adjetivo “consciencioso”): tudo bem azeitado e operante.

Apesar desta minha mania, a que dei nome elegante (leitura bordejante), tenho que admitir que há algo que as grandes obras têm, e que as obras menores parecem ter somente decantado, como se as intenções e esforços dessas fossem engenhosos e belos, mas não maquiavelicamente engenhosos nem terrivelmente belos como os daquelas. Quem sabe seja algo ligado ao timing narrativo ou à consciência orgânica da obra e seus elementos formadores, uma espécie de “clique” final (quase injusto, não fosse ele inefável) que as coloca acima das demais peças do plantel daquele escritor (às vezes fico a pensar se esse fator X do clássico não tem algo a ver com a urgência existencial dentro da qual essa obra foi concebida…).

De qualquer modo, foi esse sentimento de completude que pude observar, comparativamente ao livro A confissão da leoa, na obra Terra sonâmbula, romance (de estreia) do escritor moçambicano publicado em 1992, sendo ponto relativamente pacífico afirmar (como pude averiguar numa modesta pesquisa virtual e bibliográfica) que esse livro é dos melhores (senão o melhor) que Mia Couto escreveu.

O início de Terra sonâmbula encontra dois dos personagens principais caminhando sobre a terra moçambicana arrasada, deserta, seca, cortada por uma estrada repleta dos destroços de um país em guerra. Tuahir é o nome de um deles, um velho magro porém resistente; e Muidinga, o do outro, um menino que não teve direito a inocências pueris. A jornada que se inicia não tem, aparentemente, nada de novo ou de ostensivamente chamativo, pelo menos não até que os dois, procurando abrigo, entram num machimbombo (um ônibus), crestado parcialmente pelo fogo, e lá encontram uma maleta que contém os cadernos de Kindzu, os diários deixados por um personagem a esta altura desconhecido.

É a partir dessa descoberta que a narrativa do livro ganha outro ritmo: a trajetória de Tuahir e Muidinga vai ganhando aos poucos outras cores e outras direções (derivadas das leituras dos diários de Kindzu) e a estrutura de Terra sonâmbula passa a alternar capítulos em que se conta a história de Kindzu e capítulos que contam a história de Tuahir e Muidinga. Conforme avança a leitura dos cadernos pelos dois andarilhos, os relatos encadernados se revelam um butim de guerra tão essencial quanto aqueles alimentos e apetrechos que Tuahir e Muidinga vão recolhendo ao longo de sua travessia.

Me parece que o achado dos cadernos de Kindzu é momento-chave da obra literária como um todo, pois consegue juntar em si os fios da forma e do conteúdo, revelando (apesar de se tratar do romance de estreia de Mia Couto) a maturidade literária do autor no manejo de seu instrumento de trabalho e na execução conscienciosa (de novo em sentido positivo) de seu ofício. Revelam-se ali sua destreza narrativa e sua percepção humanista.

A escolha narrativa feita por Mia Couto é engenhosa: parece que ele está a nos brindar com “dois livros em um só”, somente para que, num exame mais minucioso, vejamos que as duas narrativas coadunam-se numa forma orgânica coesa, cujo diálogo forma grande parte do espírito mesmo da obra. Contudo, a escolha narrativa feita pelo autor é também ousada, pois não fosse sua sensibilidade para conduzir as duas linhas, Terra sonâmbula redundaria numa estrutura desencontrada, que se choca internamente, ao invés de complementar-se. Êxito formal.

São os cadernos de Kindzu, também no âmbito do “conteúdo”, que abrem os poros da narrativa à sensibilidade humana, social, política e histórica de Mia Couto. É dos contrastes, referências, comentários e aproximações às histórias contadas por Kindzu que Tuahir e Muidinga vão começando a encontrar sentidos diversos para sua própria trajetória. Parece que já não erram pela triste paisagem moçambicana, parece que agora caminham, como se tivessem ganhado um certo norte. A estrada continua dura e ressequida, os passos continuam pesados e difíceis, mas a trajetória de Kindzu parece lhes oferecer um ponto de apoio – mesmo que ele tenha, aparentemente, morrido queimado no ônibus onde seus cadernos foram encontrados.

Na história dos diários, Kindzu está em busca dos naparamas, os guerreiros tradicionais que são parte da tradição tribal do Moçambique. Eles são abençoados e “blindados” pelos feiticeiros da aldeia, sendo, pois, fonte de esperança contra os senhores modernos da guerra no Moçambique – quiçá a força que faltava para terminar com a própria guerra civil.

Aqui é necessário que percebamos a confluência dos cadernos e das andanças dos protagonistas. Muidinga padece de uma falta de memória, a qual vai sendo, aos poucos, preenchida e modelada pelo contato com as memórias de Kindzu, tanto que o menino vai transpondo diversos sentimentos e impressões acerca da leitura dos relatos para sua própria existência concreta, passando a, de certo modo, pautar-se nela quando olha para seu próprio mundo. Os estímulos negativos que Tuahir e Muidinga recebem da paisagem desoladora vão se reconfigurando, pela harmonia e pelo contraste, perante aqueles relatos tão próximos e tão distantes deles, dos quais se alimentam, um pouco a cada dia.

Não é por acaso que a jornada dos dois andarilhos começa onde a de Kindzu terminou. Há uma espécie de elo temporal e existencial em torno dessa descoberta, uma continuidade histórica que Couto pretendeu abordar, fazendo do verbo de Kindzu a carne que alimenta as esperanças e as lutas de sobrevivência diárias de Tuahir e Muidinga. Mas Couto não se deixa seduzir pelo nostalgismo de um passado idílico, tribal ou não, que poderia ter sido idealizado na trajetória dos cadernos: os relatos passados desses são referência para seguir em frente, e não de voltar para trás. A história de Kindzu não tem fim, ela conduz até o ponto onde começa a de Muidinga – ou seja, a construção de um projeto cabe ao vivo e não ao morto.

Nesse sentido, o romance de Mia Couto é exemplarmente delicado no que tange a lidar com o passado, já que a armadilha da romantização daqueles tempos ronda constantemente a literatura africana (evidência de sua trágica trajetória histórica…). É bem provável que a participação de Couto na guerrilha de libertação moçambicana tenha tido um papel crucial nesse encaminhamento muito importante que sua obra postula, impedindo que ela se feche no passado e dando-a um lastro prospectivo rejuvenescedor – lastro esse no qual as estórias, as histórias e a história, como bem demonstrou Kindzu, têm um papel muito importante.

Quem sabe a literatura de Couto seja tão canto do cisne de uma era histórica, quanto também os vagidos das dores de parto da nacionalidade moçambicana: suas espinhosas e tateantes tentativas de trilhar um caminho em meio à heterogeneidade tribal e a terrível herança colonial.


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